Por Davi Nunes
Por e-mail deu-se a entrevista permeada de um
lirismo, de uma eu enunciador que se quer e se manifesta negro, da Cinzas no
Café com o bancário, graduado em história, poeta, contista, compositor e
educador baiano, Lande Onawale. Lande teve seus primeiros poemas publicados no
início da década de 90, no Jornal Nacional do Movimento Negro Unificado (MNU).
Notabilizou-se pelos brilhantes poemas e contos publicados em diversas antologias:
Quilombos de Palavras (BA), Terras de Palavras(RJ) Black Notebooks (EUA),
Cadernos Negros (SP) entre outras. As suas publicações individuais são os
livros: O Vento (poemas), Kalunga – poemas de um mar sem fim/poems of an
infinite sea e Sete: diásporas íntimas (contos).
Davi
Nunes(DN) - Lande, a
infância, para grande parte dos escritores, é um berço de inspiração. Na sua
infância em Salvador se encontra os elementos que o construíram como escritor?
Lande
Onawale(LO) - Penso que sim,
mas como algo inevitável, uma inspiração não exatamente consciente. Já se disse
que a pessoa é, aos 80 anos, o que já era aos 8... Sendo uma fase onde se
consolidam aspectos fundamentais da nossa afetividade e cognição, fatalmente é
um minadouro de emoções pra toda vida. Por outro lado, há também uma atitude,
essa, sim, consciente de resgatar situações que uma dose de poesia que eu
julgue capaz de tocar, instigar, estimular o leitor presente.
DN - Sabemos que a branquitude, o embranquecimeto
dificultam aos negros o empoderamento de uma identidade afro-brasileira, mas no
caso da sua literatura... quando foi que surgiu, em seu texto, um eu enunciador
que se quer negro ou ele sempre existiu?
LO - Num país racista como o Brasil, o desenvolvimento
de uma Consciência Negra figura-se como um renascimento. Mal saído da
adolescência, com 19, 20 anos a partir da minha aproximação do Movimento Negro,
é que meu olhar sobre uma boa parte da existência humana começa a mudar – e a
literatura, consequentemente, acompanha essa mudança.
DN - Como foi o processo de mudança do nome de
origem colonialista para a apropriação identitária do nome africano,
constituindo a família Onawale?
LO - Foi algo, digamos, natural pra mim, óbvio. Uma
necessidade de ir mais fundo - além do pré-nome - no questionamento de uma
herança mais que colonialista, escravocrata.
DN - Quantas áfricas cabem em seu coração? A mítica,
a moderna ou ela toda em sua grandiosidade cultural, linguística e continental?
LO - Repito o que já disse a socióloga Vilma Reis:
queremos todas as Áfricas, inclusive a mítica!
DN - A elite brasileira é tão racista e atrasada
quanto um republicano americano de cem anos; sua obra literária, além de ser
uma expressão estética, surge para a superação desse racismo?
LO - A minha necessidade de expressão literária
surge com objetivos menos pretensiosos... Em algum momento – e sabe-se lá por
que – veio essa vontade de escrever sobre meus próprios sentimentos, sobre as
idiossincrasias do mundo e do ser humano. Depois, quando ‘renasço’, é que passo
a achar que a literatura que faço pode ajudar no combate ao racismo e ao
preconceito racial.
DN - Como se dá a relação de sobrevivência e criação
literária do escritor negro? A busca do ganha-pão imponderável dificulta o
aprofundamento em gêneros mais extensos como o romance, que exige maior tempo
disponível à escrita?
LO - Sem dúvida, a labuta diária é um dificultador
ao processo criativo de algo mais complexo, como um romance, mas eu acredito
muito na disciplina, como meio de solucionar ou amenizar o drama dessa equação
– embora eu seja um indisciplinado... Outro dia, inclusive, ouvi Cuti dizendo
que, ao menos em respeito à vida conturbada de Lima Barreto, devíamos nos
constranger ao ficar reclamando de certas condições inadequadas para a criação.
DN - Sete: diásporas íntimas seu livro de contos,
que desponta poderosos personagens e signos afro-brasileiros, através de uma
escrita enxuta e madura, foi inspirado na divindade afro-brasileira Esù, como
foi o processo de escrita e de reverência ao orixá?
LO - Em verdade, ainda não fiz um livro conceitual,
digo, criado a partir de um conceito. ‘O Vento’, “Kalunga...’, ‘Sete...” todos
foram ‘montados’ e, talvez, haja algum mérito na edição, pois busquei uma
coesão entre forma e conteúdo. Assim, não houve uma inspiração ‘direta’ em
iNzila/Exú, mas privilegiei textos onde estivessem presentes aspectos
essenciais desse iNkisi, dessa energia. Sete (ou Se7e rsrs), aqui, não é um
numeral, mas um conceito – talvez até um substantivo...próprio.
DN - A torre de marfim dos clássicos já lhe seduziu,
ou os tambores poéticos dos quilombos foram sempre os instrumentos da sua
inspiração?
LO - Já, sim. Por sedução, ou por imposição. Somos
quase todos um tanto corrompidos pelo racismo, pelo eurocentrismo, né? A
pesquisa da Profª Drª Dalcastagné, constata que quase 100% dos autores e
personagens da literatura brasileira contemporânea são brancos! Se pensarmos
que essa realidade é reproduzida pelos meios de manutenção da cultura e da
educação – escola, universidade, teatro, ciname, televisão...pô, quase que não
há como escapar... mas há o tambor, né? “Tem um tambor, tem um tambor, tem um
tambor... tem um tambor, dentro do peito tem um tambor” grita Carlos Assumpção.
Aí você entende quando falo em renascimento. Fui aprender já grande a usar a
caneta como ‘agdavi’...
DN - Qual a importância dos cadernos negros para a
literatura brasileira e para você já que tem trabalhos publicados neles?
LO - O Cadernos é uma das antologias regulares mais
longevas das Américas – senão a mais. Só por isso, já é revestida de enorme
significado para a literatura brasileira. Contudo, o Quilombhoje com o Cadernos
Negros e outras iniciativas trazem para a cena literária nacional, essa voz
negra silenciada, de que nos fala Dalcastagné. De algum modo, penso que nosso
texto vem (inter)ferindo a ideia hegemônica (e eurocêntrica) do que se concebe
secularmente como literatura, como ‘boa’ literatura. Para mim, a publicação foi
crucial por, pelo menos, duas razões: onde primeiro publiquei, em livro, e onde
começo a lidar pra valer com a crítica – o processo de seleção dos textos
previa que autores, teóricos e leitores, pseudoidetificados, avaliariam todos
os textos.
DN - O mercado editorial para os escritores negros e
temas afro-brasileiros ainda é muito fechado?
LO - O mercado editorial para autores e temas
proscritos é muito fechado, e nós, negros, bem como nossa vida fazemos parte da
“lista branca”, dos assuntos tabus – sobretudo quando enunciados por nós
mesmos. Evidentemente, a sociedade se transforma, a luta pelo reconhecimento da
nossa humanidade avança e, fatalmente, vemos luzes no que se pensava ser o fim
do túnel. Eu tenho, ainda, uma confiança muito grande no poder da literatura de
tocar as pessoas, de seduzí-las, encantá-las, cativa-las dentro de um desejo de
liberdade de imaginação e expressão.
DN - Por fim, que lição você deixa para os
escritores que se iniciam na escrita de uma literatura mais ensolarada,
buscando expressar os sentimentos azeviches presos na alma?
LO - Não chamaria de lição, mas de confissão:
descobri que o grande sol vai dentro de cada um de nós. Não devemos temê-lo,
porque o medo é, como sabemos, o avesso da realização. O racismo nos interdita
a nós mesmos e, como consequência, ficamos proibidos, desautorizados a emitir uma
voz que soe autônoma, a proferir nossas verdades sobre o que quer que seja.
Nesse sentido, ser um escritor ou escritora é o que a sociedade racista menos
espera de um(a) negro(a), escrever seria quase nosso avesso, pois o que mais
fazemos nós ficcionistas senão inventar mundos e verdades? Agora imagine se dissermos
que o mundo é negro, então...Ah, não! Essa não! Assim já é demais! Rsrs Eu não temo escrever sobre mim/nós,
sobre “feridas que ainda estão abertas e sendo mexidas”, como já disse a
escritora Toni Morrison... Ao contrário do que dizem alguns autores e críticos
(negros, inclusive), a minha luta não me limita (nem a minha literatura), a
minha luta me liberta! Dentro de cada peito negro está toda a humanidade,
dentro de cada suspiro, cada riso, cada grito.
Revista
Artístico-acadêmica Cinzas no Café. Edição 3, novembro/2012, p.11-13.
Facebook: http://www.facebook.com/revistacinzasnocafe?fref=ts
Nenhum comentário:
Postar um comentário